quarta-feira, novembro 14, 2007

Surrealismo de resultados

Já perdi a conta, mas essa deve ser a quarta ou quinta entrevista que eu faço com Cadão Volpato. Sei que ela irá dar mais munição ao pessoal que gosta de pegar no meu pé pelo fato de sempre escrever sobre o Fellini ou sobre coisas relacionadas aos seus integrantes. Mas que culpa tenho se o que eles fazem acaba virando notícia? Desta vez, Cadão ganha espaço em dobro por lançar ao mesmo tempo um álbum, que marca a sua estréia solo, depois de anos trabalhando em grupo, e mais um livro de contos.

O CD se chama Tudo o Que Eu Quero Dizer Tem Que Ser no Ouvido (Outros Discos) e não deixa de ser uma surpresa. Primeiro, pelo fato de Cadão trabalhar sozinho, desde a composição até a execução das canções. Depois, porque não se esperava nada mais dele em termos musicais depois de decretar que “a música acabou”, logo após a apresentação do Fellini no Tim Festival de 2003.

E o livro é Questionário, que se junta a Ronda Noturna e Dezembro de um Verão Maravilhoso, ambos da mesma editora (Iluminuras). São pequenos contos, originados a partir de perguntas do tipo “Quão velho é seu amante?”, “Já dormiu num automóvel?”, “Gosta de black music?”, que são respondidas por personagens através de monólogos.

Será um passatempo divertido procurar relações entre os dois novos trabalhos de Cadão. No disco, Cadão conta [ou melhor, reconta] histórias mais ou menos conhecidas, envolvendo pessoas públicas, como a fotógrafa Astrid Kirshner, o humorista Jacques Tati e o pintor Rene Magritte. Já no livro, alguns contos têm algo de autobiográficos, trazendo a marca registrada, a característica principal de seu trabalho como contista [e até em algumas letras do Fellini], que é o caráter inconclusivo dos textos, abrindo espaço para que o leitor dê um sentido a tudo o que está sendo dito.

O papo aconteceu na sede da Trip Editora, em um prédio discreto do bairro de Pinheiros (SP). Lá, Cadão trabalha como editor da revista da Natura, conhecida empresa de cosméticos. Alías, é esse tipo de publicação, conhecida no mercado editorial como revista customizada, que garante a sobrevivência financeira da empresa.

Ao chegar na recepção no dia marcado para a entrevista, uma simpática moça tenta me explicar onde posso localizar Cadão. “Você vai através de toda a redação da Trip e a sala dele fica bem em frente ao banheiro”, diz. Sua descrição faz parecer o local muito maior do que é na realidade. Assim que o elevador chega no segundo andar e avanço uns poucos metros, consigo avistar Cadão. Na verdade, ele não fica numa sala propriamente dita, mas numa mesinha bem no meio do salão, que, a bem da verdade, é de porte médio.

Depois dos cumprimentos e uma brincadeira a respeito do tempo que se passou entre nosso último encontro, em 1996, e o de agora [três filhos – por parte dele – e muitos fios de cabelos caídos de ambos os dois], Cadão me diz que só tinha um exemplar de seu livro, mas não do CD. Disse que já o tinha escutado e ele quis saber minha opinião. Respondi que gostei, mas que faltava algo mais na sonoridade A entrevista já tinha começado antes do gravador ser ligado.



(...) O último disco do Fellini, por exemplo, tem todo um conjunto de arranjos com sampler, é bem complexo. Não é simples. E a minha idéia era fazer uma coisa simples. Como diz o Jorge Drexler, é uma coisa de “canta-autor”. São baladas. O que você esperava?

Como The Gilbertos era uma extensão do Fellini, eu esperava essa extensão do grupo no seu trabalho...
Eu não acho que The Gilbertos seja uma extensão do trabalho do Fellini.

Eu acho. Tira a voz do Thomas [Pappon, também jornalista, membro único do The Gilbertos, ex-parceiro de Cadão no Fellini] em “Polly” e “Esguicho” e coloca a sua. Fica igual.
Mas eu não faria uma música como “Esguicho” com o Thomas. Tem muita coisa do The Gilbertos que eu não faria. Eu gosto muito mais do primeiro disco. Algumas coisas do segundo disco eu não faria por que não é o meu estilo, é o estilo do Thomas, isso que é legal. Ele tem o ouvido muito musical, é mais músico, tem mais habilidade musical. O Thomas ouve muito mais música do que eu, é uma verdadeira enciclopédia de pop. Isso ajuda muito. Eu não ouço tanta música quanto ele.

E o que você tem ouvido atualmente? Continua curtindo jazz?
Não, eu não tenho ouvido mais jazz. Engraçado, né? Em uma época pareceu uma grande petulância da minha parte dizer isso, mas hoje em dia não ouço muito. O último disco que eu ouvi foi o da Maria Bethânia, Que Falta Você Me Faz. Ela faz um tipo de arranjo meio anos 60. Eu estava ouvindo algumas coisas enquanto eu fazia o meu disco. Em primeiro lugar estava a Nico, com Chelsea Girl. Esse é um disco de referência para o que eu fiz. Só não tem violoncelo, mas tem guitarra. É um puta disco, porque tem canções de Bob Dylan, Jackson Brown, John Cale, Lou Reed, caras que foram fundamentais para minha audição. A voz do Lou Reed é simplesmente essencial. Ouvia também um cara, que é um professor da Califórnia ou de Miami, não lembro agora, que montou uma banda de um homem só chamada Iron & Wine. Ele tem umas baladas superintimistas, com pouca instrumentação, um violão folk. Eu comprei o disco nesse ano. O disco é curioso, pois a capa é pintada por ele mesmo.

Você achou seu duplo, então?
... [risos] Não sei se ele é meu duplo... Ele é muito melhor. Eu comprei pela capa e pela proposta. Vi em uma revista a cara dele e pensei que deveria ser legal. É meio nessa linha Elliot Smith, Nick Drake, da qual eu gosto muito também.

A sua trajetória é bem interessante. Você escreve contos, romances, textos jornalísticos; apresentou e apresenta programas de televisão. Você também fez comerciais. Trabalha com música, seja solo ou com o Fellini. O rótulo de multimídia caberia bem ao que você faz?
Sei lá. Eu faço realmente um monte de coisas. Rótulo é rótulo. Acho que tanto faz. Ao pé da letra, é, né? Mas é que se trata de uma palavra tão antipática, parece que faz tudo mal. O multimídia não consegue fazer nada direito. Na real, é isso. Eu não acho que seja assim. Faço algumas coisas porque tenho um talento natural e uso isso. Não me traz esforço algum apresentar programas de televisão. Os comerciais, sim, por que são chatos de se fazer. Você tem que bancar o idiota, vender Bradesco, essas coisas. Para mim é desagradável porque sou contra os banqueiros. Escrever e fazer música são habilidades naturais, eu acho. É óbvio que dá um puta trabalho. Não sou um diletante, na verdade, me esforço como um profissional. Eu só lanço meu trabalhos de forma independente porque é uma forma de ter liberdade. E também porque nunca fui convidado para fazer uma coisa como um escritor da Companhia da Letras, da Objetiva ou qualquer outra dessas editoras. Nem fui convidado pelas grandes gravadoras para fazer um disco. No entanto, meu empenho é profissional. O que o Fellini fazia, não era uma coisa amadora. Tínhamos um conceito, uma concepção avançada. Tanto era avançada, que nós não tínhamos compreensão total do que estava acontecendo. Modestamente, a gente acabou influenciando algumas pessoas, temos um público que ainda é fiel, isso para uma banda que não existe desde 1990 [apesar de ter lançado um disco mais de uma década depois], só fez um Tim Festival e deixou muita gente embasbacada porque tocamos no Tim Stage. Sou empenhado naquilo que eu faço. Para mim, o que importa é isso: fazer música e escrever. São as coisas que me levam para a frente, que fazem com que meu dia-a-dia não seja um inferno.

Existe alguma outra mídia ou manifestação artística da qual desejaria participar? Rádio ou teatro, por exemplo?
Rádio é uma coisa bacana. Ontem eu fui ao programa do Kid Vinil, na Brasil 2000 FM, e adorei aquilo. Foi ótimo rever o Kid, porque ele é um cara que eu admiro muito. Descobri que ele teve um programa de punk em 1978, o primeiro programa do Brasil, talvez, ou ainda da América Latina. Ele tinha viajado para Londres e viu Clash, Sex Pistols, tudo o que você possa imaginar. Mais tarde, voltou para lá e viu um show dos Smiths no começo, com 50 pessoas na platéia. Esse é o Kid Vinil. O cara é a verdadeira história do rock e acho um barato que ele seja assim. Agora, teatro eu acho um saco. Sou favorável àquele slogan do Casseta e Planeta: “vá ao teatro, mas não me convide”. E olha que gosto do Tchecov, é um dos meus escritores favoritos. Mas acho que o teatro que é feito no Brasil é qualquer nota.

Em algumas entrevistas, você disse ter um certo bode do seu passado com o Fellini. Como lida com isso hoje?
Isso hoje está bem mais resolvido. Não há nada como a distância e o tempo. Resolvem tudo. Quando o meu tempo com o Fellini passou, fui envelhecendo e passei a enxergar aquelas coisas como as coisas divertidas que fiz na vida. Hoje olho para tudo aquilo com carinho. Foi um barato ter feito, ainda bem que eu fiz. O Fellini me deu muitas coisas. Depois de um tempo, percebi que não fiquei pregando no deserto. Mas francamente não acho que a gente seja fundamental na história da música brasileira, não tenho essa concepção. O Thomas acha... [risos] Eu acho que fomos capazes de ter liberdade incondicional no que fizemos. Isso é raro para qualquer artista, seja ele amador ou profissional. Fizemos o que quisemos e pagamos o preço disso. Não vivemos de música, não ganhamos dinheiro com isso. Isso é uma coisa triste. Uma banda como o Fellini em qualquer lugar do mundo mais civilizado [Europa, Estados Unidos] teria um papel de banda mediana, uma banda que se sustentaria e poderia prolongar suas experiências musicais. Quem sabe onde iríamos parar? Tudo poderia ser diferente. Poderíamos encher o saco disso tudo também.

Por falar em encher o saco, você me disse que “a música acabou”, uma frase bem marcante, em uma outra entrevista. Em que momento mudou de idéia?
Mudei de idéia quando comecei a compor de novo. Toco violão desde os 15 anos e tenho uma atividade musical que se prolongou por muito tempo. Sei tocar, sei fazer, sei compor. Achei que chegou um momento de me confrontar com minhas próprias iniciativas musicais. O momento chegou, veio como deveria vir. As coisas acontecem muito tarde na minha vida, mas acontecem

Antes tarde do que nunca...
É, já fiz o meu disco, enfim...

Só falta plantar a árvore...
Já plantei quando tinha 7 anos, no Dia da Árvore... [risos]

Tem registros disso? [risos]
Infelizmente, não. Mas se eu conseguisse encontrar minha professora do primário... Acho que isso não vai acontecer... [mais risos]

Aquela frase foi muito forte, sabia?
Mas isso foi uma frase de efeito. Eu pensava daquela forma mesmo. Disse aquilo também baseado no que se fazia de música no Brasil e no que me interessava no que se fazia de música no mundo. O Brasil passa por um momento musical muito ruim. A MPB passa por um momento muito ruim de criatividade e invenção. Se você pensar que tivemos nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo e, principalmente, Tom Jobim... Se já tivemos nomes como esses, um letrista com Vinícius de Moraes, não é possível que a música brasileira esteja em um atoleiro como está agora, vivendo de um monte de cantoras de voz grossa, cujas composições são inócuas, ridículas. Eu ouço muito isso no rádio...

E qual seria o seu diagnóstico para esse momento?
Porque é uma pobreza mundial. Vivemos numa fase em que a criatividade no mundo se volta para o passado, de uma forma absolutamente canibal.

Você não acha que batemos no teto em termo de criatividade? Tudo já foi feito e não há mais para onde ir?
Acho que as pessoas são mais fracas hoje em dia. Antigamente costumava-se estudar. Hoje não se estuda. E outra: a Internet aceita tudo. Então, existe um sentimento de autotolerância dos mais jovens que eu acho meio ridículo. Quando eu era mais novo, tinha uma puta autocrítica [risos]. Eu e meus amigos... Era uma coisa que pegava bem pesado, porque a gente não se levava muito a sério. Hoje em dia qualquer cabeludo se acha o melhor compositor do mundo. Aí, vai sair tocando uma guitarra muito mal ajambrada e se acha sensacional. Essas coisas já foram feitas, isso é ridículo. O punk já existiu. Inclusive, esse é o lado ruim do punk, ter criado esse tipo de aberração.

Você está lançando um livro ao mesmo tempo de seu CD solo. São trabalhos totalmente diferentes?
Eu costumava dizer que não tem relação, mas é lógico que há. No lance musical existe uma poética um pouco mais livre, vamos dizer assim. No livro, existe uma poética, mas a de um escritor que pensa numa coisa um pouco mais global, porque o livro é um universo e tem peças que se relacionam. O meu livro é assim: ele se conecta na cabeça de quem o lê. Pode ter uma leitura shuffle, inclusive. Pode-se ler pela parte que quiser. Ele tem contos que se interligam de alguma forma e tem um universo ainda. E o CD, evidente, tem uma idéia, tem um conceito, acho que ele existe, só que é bem mais livre. Há uma contingência para se fazer música. Sempre faço a música primeiro e a letra depois. Então, ela tem que se adaptar a melodia. São dois trabalhos diferentes nesse sentido, mas é óbvio que foi a mesma pessoa que os fez. Deve ter uma relação, sim, mas não sou eu que vou dizer se tem ou não.

Está se vendendo o seu disco como uma aproximação à MPB. Isso se deve aos seus incidentes com o mundo indie, o mundo rock? [Essa é uma citação a um episódio recente no qual uma banda que Cadão montou, chamada Baile Punk, foi escalada para tocar em uma casa noturna indie de São Paulo, mas o local não reunia as condições técnicas adequadas. Após discutir com os responsáveis, Cadão foi embora sem se apresentar.]
Não, acho que é natural. Eu sempre ouvi muito MPB. A música brasileira é uma das mais ricas do mundo. Ter um Tom Jobim é ter um gênio na sua raça, isso é inegável. Como é que uma música tão forte como essa não vai influenciar quem faz música no país? Claro que vai, por mais que se fuja disso. Fazer rock no Brasil e cantar em inglês significa fazer uma micagem do que se faz em Londres ou nos Estados Unidos. Não venham me dizer que isso é uma expressão, não. É tipo não ter o que dizer. E inglês fica mais fácil. Então, a música brasileira é uma influência para todo mundo. Agora, as pessoas trabalham com as influências que têm. Eu sou um cara que era jovem na época em que o pós-punk estava no mundo. Era a música do mundo. Existe uma atitude muito bacana que era o punk, que me possibilitava, tocando medianamente um instrumento, ter uma banda. Era uma questão de atitude, mas nos distanciamos disso logo, porque não fazíamos essa tosqueira toda que era o punk. Começamos a nos sofisticar. Isso marcou no Fellini a união da música brasileira com rock porque era uma tendência de sofisticação natural. Porque éramos inquietos, queríamos fazer coisas diferentes. Não queríamos fazer o rame-rame. Se entrássemos nessa, certamente estaríamos no rádio.

Como é o teu relacionamento com o Rodrigo Lariú, do midsummer madness? Algumas de suas idéias são totalmente opostas à linha do selo dele, que lançou há três anos Amanhã é Tarde, o último álbum do Fellini...
Tenho um relacionamento ótimo com ele. O Lariú foi muito legal conosco por ter aceitado em seu selo o disco do Fellini, que é muito MPB. Pelo o que eu sei, ele gosta muito do disco e é uma honra ter um Fellini no seu cast. Eu acho um barato estar ligado a uma gravadora de indie rock, porque a minha idéia de música passa por isso também.

[Ainda na mesma resposta, Cadão volta a falar de seu disco solo]
Eu brinco com o conceito do meu disco. Acho que é um disco de banquinho e guitarrão. É bem isso mesmo. A idéia era não ser MPB, mas ser MPB também, por que não? A minha tradição de ouvinte é de coisas dos anos 70. Quando o Carnaval Chegar, de Chico Buarque, para mim é um disco muito importante. Um compositor chamado Sidney Miller, que era daquela época também, foi um cara muito importante, porque eu gosto de melodia. Gosto de palavras e melodia, gosto de poética e melodia. Isso é a música brasileira, é o que ela tem aos borbotões. Agora, a MPB vai até uma certa fase. Começa os anos 80 e pode se jogar tudo no lixo. Nesse sentido eu e o Thomas somos bem parecidos, porque ele pensa a mesma coisa. Se bobear, Thomas tem uma cultura musical bem maior que a minha, mas nós ouvimos as mesmas coisas de uma certa forma. Ele gosta de coisas mais experimentais e eu gosto de melodias, de coisas arrebatadoras.

Quando você pensou em fazer o disco solo sua intenção era de cara oferecê-lo à Outros Discos?
Foi a primeira opção que ocorreu. Maurício Bussab foi extremamente generoso. Ele soube que existia o disco do Funziona Senza Vapore, quis ouvi-lo, gostou e me chamou para a gente lançar. Ponto. Essa facilidade, essa coisa bacana de se lançar um produto assim, uma coisa menor, isso me estimulou muito. Quando fiz meu disco solo, fui direto até ele. Era o cara que eu queria que ouvisse esse trabalho. O material que eu tinha apresentado de primeira apresentou alguns problemas técnicos, por isso que ele tem duas datas de gravação: setembro de 2003 e setembro de 2004. Eu voltei ao estúdio com ele e aí as músicas ganharam arranjos que ficaram um pouco mais sofisticados. Essa parte mais tosca de que você fala é a parte inicial. Nela, eu fui sozinho para o estúdio, botei uma guitarrinha e cantei em cima. Depois, eu e ele fomos intensificando um pouco mais os arranjos. Aí ficou um pouco mais complexo, acho.

[Na pergunta seguinte, eu queria saber mais sobre o processo de criação de Cadão. Planejava fazer uma relação de seu ato de escrever com seu ato de composição e, para isso, me baseei em uma entrevista sua ao site Rabisco – leia aqui. Nela, ele disse escrever seus contos à mão livre. Agora, Cadão não se utiliza mais desse recurso.]
Não costumo escrever à mão. Eu já escrevi muita coisa à mão, mas hoje em dia tudo o que eu escrevi do meu próximo livro eu escrevi no computador. Em Questionário, escrevi algumas coisas à mão, outras no computador. Não tenho nada contra o computador , ele facilita a vida de todo mundo.

É que você disse, não sei se foi a mim ou em uma outra entrevista, que você escrevia à mão...
Sabe o que é? Eu tenho meio que um fetiche por letra, pela minha letra. E escrever ajuda muito a pensar. Esse é meu caderno de anotações... [mostra uma caderneta preta]

Esse é o meu... [mostro a ele um velho caderno universitário]
Para o disco eu não sentei no computador para fazer as letras. Meu contato com o computador para fazer música é zero. O Maurício gravou algumas coisas e sintetizou algumas guitarras no computador, dando alguns efeitos, o que foi muito legal. Tudo que o Maurício fez no disco melhorou-o muito. Engraçado que o Thomas pensa o mesmo que você. Ele acha que as músicas que têm só guitarra e voz estão incompletas e as que têm voz complementar, guitarras dobradas ou algum outro efeito ficam mais legais.

Você pretende continuar compondo e gravando solo?
Não tenho a menor idéia, Rodney. Eu continuo compondo. Talvez eu grave.

Para você mesmo ou para um futuro com o Fellini?
Para o Fellini, não. Não quero mais tocar com o Fellini.

Você acha que acabou mesmo?Ë tudo muito difícil. O Thomas mora em Londres, não cabe ficar fazendo coisas em conjunto. Ele sempre vem com umas idéias do tipo: “em agosto estou aí no Brasil, vou levar meu porta-estúdio”. É provável que, se ele vier e trouxer o porta-estúdio, nós possamos gravar alguma coisa, mas vamos ver. Eu estou gostando da minha carreira solo, acho bacana. Tenho ensaiado muito com o Jair Marcos, que era do Fellini, para tocar no lançamento do CD [que seria no dia seguinte à gravação desta entrevista]. Tem sido um prazer tocar com ele. Nós já trabalhávamos musicalmente juntos desde 1979, em uma banda punk chamada Toque de Recolher. Agora, nessa fase mais acústica, nos demos superbem. Daqui para a frente, talvez eu leve adiante um trabalho com duas guitarras. E gostaria que o Jair participasse disso. Ele é um puta talento.

Além dele, existe outra pessoa com quem você gostaria de trabalhar?
Maurício Bussab. Enquanto músico, as idéias musicais que ele tem são muito bacanas. Ele é um cara brilhante. Acho que ele é um mentor musical muito generoso. Não é um cara preconceituoso, sectário. Isso são coisas que melam a atividade artística, mas ele é um cara bacana. Eu gostaria de trabalhar com ele.

As letras do seu disco continuam pós-modernas, cheias de referências. Uma delas é Astrid Kirshner, fotógrafa que registrou os Beatles na fase de Hamburgo. Existem outras?
Vou te contar exatamente o que aconteceu. Não acho que seja pós-moderno, não sei como te definir. Primeiro, que tem uma coisa surrealista, mas com o pé no chão. É um “surrealismo de resultados”... [risos]. Outro dia, ouvi uma expressão muito boa que é “punk de resultados”... [mais risos]. O meu surrealismo é um “surrealismo de resultados”. Ou seja, tem uma função poética. Eu sou um leitor de poesia há muito tempo, desde os anos 70. Tenho uma formação poética e não me arrependo disso. Acho que foi essencial para mim. Li muito Erza Pound, Eugène Montaigne, Giuseppe Ungaretti. Gosto muito de Drummond, o próprio Augusto de Campos... Passei por todos eles. Oswald de Andrade, enquanto poeta, acho bacana. Eu diria que tenho um mix de influências. No caso dessas letras, a coisa toda aconteceu em um período só, em um espaço de três semanas, no ano de 2003, um pouco antes do Tim Festival. Comecei a entrar naquela trip do festival, achando “pô, que bacana”. Bom, aí curiosamente aconteceu comigo um movimento contrário: em vez de me colocar como um popstar, acabei me recolhendo. Nesse processo, decidi fazer algumas coisas. Eu tinha visto um documentário sobre Renè Magritte, um pintor surrealista, e dali saíram algumas idéias. Começou o processo aí.
A música “Carrossel” surgiu assim. Magritte conheceu a mulher dele em um carrossel. Eles se apaixonaram só de se olhar, mas foram se casar sete anos depois. “Carrossel” cita LSD, uma música do Fellini: “Conheci você num carrossel/ Numa segunda-feira faz 100 anos”. O meu disco é romântico. Se você prestar atenção, os discos do Fellini são românticos, então é uma coisa que permanece normal. As outras músicas vieram na seqüência. A história da Astrid Kirshner veio de uma Rolling Stone especial sobre o George Harrison na qual havia várias fotos dos Beatles tiradas nos tempos de Hamburgo. Ela tinha uma relação muito legal com o George, então é por isso que a música fala “O primeiro era um irmão/ O segundo era um cínico”. O cínico era o John Lennon. “O terceiro veio ao Rio/ Onde ela havia nascido”. É uma piração, mas enfim o Paul McCartney veio tocar no Rio de Janeiro. “Vai do quarto para a sala”, eu gosto muito dessa frase, o quarto pode ser o quarto beatle, que é o Ringo, mas na fase Hamburgo ainda não era ele. É uma mescla de efeito romântico com uma figura pública. E eu gostei de fazer isso.

São histórias que você gostaria de recontar, então?
De certa forma eu acho que são histórias não contadas. A história da Astrid é conhecida, mas é do começo dos Beatles, quando eles não eram famosos, é bacana.

Nesse caso, não teria um quê de jornalismo? Porque você pega essas histórias e as reconta...
Não, eu não tenho nenhum interesse em fazer jornalismo, porque quando se faz isso, na verdade está se querendo passar uma mensagem e não tenho intenção de fazer isso. Eu quero contar coisas que me emocionam e isso é poesia. Se isso sai da minha mão de uma forma que emociona as pessoas, é o que importa para mim. Esse disco tem a preocupação de ser fiel a mim mesmo e de dizer coisas que sejam bacanas, não importa que elas tenham um sentido imediato. Por isso que eu falo “Tudo o que eu quero dizer não faz sentido/ Tudo o que eu quero dizer tem de ser no ouvido”, daí o título. Porque é uma coisa íntima e essas coisas íntimas nem sempre tem sentido, né?

Tem um tema instrumental no seu disco, não?
Sabe de onde veio? Eu li na Internet que o Jaqcues Tati, um cineasta de quem eu gosto muito, ele tinha uma frase assim: “meus filmes não fazem madame Tati sorrir”. Eu achei isso sensacional, o cara era um cômico e os filmes dele não faziam a mulher dele rir. Já pensou que tragédia familiar? [risos]

Talvez ele fosse engraçado em casa...
Acho que ele não era nada engraçado em casa... Daí saiu essa música: “Tudo o que ele faz não faz ela rir”. E tem essa cara meio retrô, meio seriado dos anos 60. Eu usei o mesmo tipo de teclado Casio que usava nos tempos do Fellini, um teclado vagabundinho. Então, tem uma relação com o Fellini, de fato tem.

Acho que tudo o que você ou o Thomas – e mesmo o Ricardo e o Jair – em termos musicais vai ter uma relação com o Fellini, tanto para o bem, como para o mal.É, mas tudo bem. Tá limpo...

[Olhando para o exemplar de Questionário que ganhei de Cadão] Esse aqui é mais um livro de contos...
Eu inventei um processo. São 30 perguntas aleatórias para personagens, cujas respostas têm uma relação entre si. São alguns blocos de perguntas relacionadas com um mesmo período. Digamos que elas avancem do final dos anos 70 para meados dos anos 80. Eu criei uma espécie de monólogo, uma coisa meio teatral. É uma coisa meio proustiana, porque Proust tinha esse questionário elegante que ele passava aos amigos mais chegados, tipo “qual o seu hobby?”. É um jeito diferente de fazer um conto.

Com certeza, esses textos devem trazer a marca do caráter inconclusivo de seus trabalhos...
Isso eu acho uma coisa importante, porque é uma forma do leitor ter uma participação no livro. Você pode montar algumas coisas na sua cabeça e elas podem lhe trazer alguns significados que talvez não tivessem para mim. Isso é bacana.

Você está trabalhando em algum outro livro?
O próximo é um conjunto de pequenos contos e uma novelinha, e vai se chamar Paciência Revolucionária. Vai sair também pela Iluminuras. Deve ser publicado no começo do ano que vem. Ninguém sabe disso...

Vamos furar todo mundo, então. [risos]



A entrevista não acabou depois que o gravador foi desligado. Depois de ler os contos de Questionário me dei conta de que alguns dos monólogos caberiam muito bem em teatro. Imediatamente lembrei do trecho da entrevista em que Cadão dizia achar o teatro feito hoje em dia chato. Escrevi a ele e até levantei a relação dos textos do livro com o programa Contos da Meia Noite, iniciativa bem legal da TV Cultura, de São Paulo. Eis sua resposta, via e-mail:

“Você tem toda razão sobre os monólogos. O teatro que eu não gosto é o teatro que tem por aí. Mas é meio injusto dizer isso, sem ver nenhuma peça. Aliás, pura contradição: assisti a uma montagem de A Morte do Caixeiro Viajante, do Felipe Hirsch, que gostei muito. Então, põe na minha conta: foi meio uma frase de efeito”.

No final, ele dá uma boa notícia . “Fiquei tão animado com ontem que vou continuar tocando. Eu e Jair.”

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Publicado no site Bacana

 
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